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Fernanda Lopes de Almeida, a escritora partidária de todas as crianças

Fotografia da autora Fernanda Lopes de Almeida

A década de 1970 foi muito feliz para a literatura para crianças no Brasil. A despeito da censura e da opressão que dominavam a sociedade – ou talvez como uma resposta a ambas –, uma verdadeira explosão de criatividade ocorreu, numa área em que desde a morte de Monteiro Lobato nada de novo havia acontecido.

A literatura para o público infantil e juvenil que predominou entre as décadas de 1940 a 1960 se caracterizou por uma monótona repetição de obras muito semelhantes, que obedeciam aos desígnios da escola, como apontam as estudiosas da literatura infantil e juvenil Marisa Lajolo e Regina Zilberman.

Por isso, não foi à toa que o pesquisador Edmir Perrotti chamou essa “velha literatura” de “utilitária” – aquela que se articula “a serviço de algo”, que é criada com a finalidade principal de ensinar.

Bom em criar nomes, Perrotti denominou o grupo de jovens artistas que surgiu de “Geração 70”. Os escritores que compuseram essa geração não queriam ensinar nada. Quase todos provenientes de áreas diversas, estranhas à pedagogia, seu objetivo principal era tratar as crianças com respeito e trazer-lhes um pouco de alegria.

Caracterizada por um saudável ânimo juvenil e libertário, a “nova literatura”, como ficou conhecida, não se originou de um movimento coletivo. Pelo contrário: mesmo antes de década de 1970 se abrir oficialmente, começaram a pipocar pelas editoras brasileiras obras para crianças derivadas de novas e criativas propostas. Passando longe dos objetivos pedagógicos e moralistas, esses novos artistas trouxeram ao mercado editorial uma diversidade nunca antes vista no Brasil.   

Alguns buscaram uma nova estética visual, como Ziraldo, com o livro ilustrado Flicts, e Juarez Machado com o livro de imagens Ida e volta. Escritoras como Edy Lima, com sua série de “vacas voadoras” e Elvira Vigna, com o personagem Asdrúbal, o monstro, valeram-se do humor cáustico e do absurdo para representar o sufoco de viver sob uma ditadura militar. Outras escritoras criavam histórias que despertavam as crianças para seu direito de lutar pela liberdade de expressão e de ser, como Ruth Rocha, Ana Maria Machado ou Lygia Bojunga. Mas, com certeza, o foco de todas e todos era abrir espaço para que as crianças pudessem se desenvolver integralmente e de forma psicologicamente saudável como seres humanos.

Veja também: 8 autores de literatura infantil que toda criança merece conhecer

FERNANDA LOPES DE ALMEIDA: SUAS PRINCIPAIS OBRAS E A COLEÇÃO PASSA ANEL

De todo o grupo de escritores da Geração 70 poucos se colocaram ao lado das crianças tão incondicionalmente como a carioca Fernanda Lopes de Almeida.

Crédito: Reprodução.

Psicóloga de formação, mas descendente de uma família de escritoras (ela era neta de Júlia Lopes de Almeida), Fernanda reuniu a habilidade com as palavras e a experiência clínica para dar voz às crianças, cuja educação, na época, era ainda bastante repressora.

Começou com uma delicada novela chamada Soprinho, publicada em 1971 na editora Bondinho, depois na Melhoramentos e, por fim, na Ática. O protagonista era um personagem fantástico, oriundo do meio natural; o tema, a capacidade de destruição e de regeneração da natureza, que Soprinho apresentava às crianças por meio das experiências vividas no livro.

Em seguida veio A fada que tinha ideias, em que a encantadora personagem de nome Clara Luz contrariava a mãe e uma legião de fadas adultas por estar cansada das “velhas mágicas” retiradas de um tradicional livro, que nunca mudava. Não é que Clara Luz sempre se desse bem nas mágicas que inventava mas, em oposição ao padrão tradicional “faça tudo igual a todo mundo e você sempre se dará bem”, suas iniciativas rebeldes sempre acabavam resultando em coisas interessantes. O livro se transformou em um clássico da literatura para crianças, sendo lido geração após geração desde seu lançamento em 1975.

Em 1977, Fernanda surgia com outro livro fadado a se tornar um clássico: A curiosidade premiada, cuja proposta disruptiva se dirigia não apenas às crianças mas também a seus pais, mostrando que a curiosidade – aquela que segundo a educação tradicional havia “matado o gato” – era um impulso muito saudável, que precisava ser estimulado. Criado em parceria com o cartunista Alcy Linares, o livro trazia como novidade os balões de fala, em substituição aos diálogos escritos, e uma sequência narrativa muito ágil, que combinava texto e imagens de forma inovadora, fazendo dele um percursor dos livros ilustrados de hoje em dia.

Os textos curtos, poéticos, desafiadores, cheios de novas ideias, criados por Fernanda Lopes de Almeida, associados ao trabalho de novos ilustradores ou cartunistas, continuaram se transformando em novos sucessos, incluídos em uma coleção muito bem-sucedida, a Passa Anel, uma novidade no mercado infantil da época. Até hoje a coleção pode ser encontrada no catálogo infantil da Ática, mesmo que essa editora tenha se transformado em uma ínfima parte de um grupo gigantesco.

Na mesma linha, depois de A curiosidade premiada, veio em 1980 Pinote, o fracote, e Janjão, o fortão, também em parceria com Alcy Linares, em que a luta inteligência versus força bruta é representada de forma expressiva e bem-humorada.

A coleção também trazia títulos que tinham como tema as emoções humanas compartilhadas por crianças e adultos. Em 1978, veio Gato que pulava em sapato, em parceria com a ilustradora Cecília, que dava às crianças e a seus pais a oportunidade de refletir sobre o problema da superproteção e a necessidade de espaço para que pudessem crescer com liberdade.

Em 1980, foram publicados A margarida friorenta, com ilustrações de Lila Figueiredo, sobre a importância do afeto, e o surpreendente O Equilibrista, com imagens de Fernando de Castro Lopes, em que os balões de fala eram retomados para expressar, em forma de alegoria, a necessidade de construir novos caminhos, sempre equilibrados nessa linha tênue e precária a que chamamos vida.

Durante muitos anos Fernanda continuou escrevendo e publicando novas obras de muito sucesso, na Passa Anel e em outras coleções. Sua grande editora foi Regina Mariano, criadora do selo infantil da Ática. Tive a oportunidade de trabalhar com ela quando substituí Regina nessa função, em 1986. Fernanda era uma mulher delicada mas firme, extremamente rigorosa no acompanhamento da edição de seus livros.

Imagem do livro A curiosidade premiada, de Fernanda Lopes de Almeida.

Qual seria o segredo do sucesso dessa discreta escritora, cuja popularidade quase nunca conseguiu afastá-la de seu retiro no bairro de Santa Teresa no Rio de Janeiro? Em uma entrevista dada ao jornal Folha de S. Paulo em 1979, Fernanda revelou uma ideia subjacente às histórias que criava: “A fantasia é tão real quanto a realidade, ela dorme e acorda conosco, faz parte de nosso dia a dia. A diferença é que está nas sombras, e a tendência é de chamar de real apenas o que está na luz”. Entre a “luz” e a “sombra”, defendia ela, existe um espaço em que as crianças, diferentemente dos adultos, transitam com bastante facilidade.

É para esse espaço que suas obras levam os leitores – talvez o mesmo espaço para o qual os bons livros infantis deveriam sempre levar as crianças.

O psicanalista inglês Donald Winnicott, que se aprofundou no estudo da infância, descobriu em sua prática clínica algo que chamou de “terceiro espaço”, imaginário, que se situa entre a “realidade concreta” do mundo e a “realidade psíquica ou pessoal” de cada indivíduo. Esse espaço, que Winnicott chamou de “potencial”, começa a ser construído quando, ainda bebês, passamos pela difícil experiência de separação do seio materno. É ele que nos conforta e dá suporte diante dessa perda básica essencial, é um lugar só nosso, que nos serve de alento nos momentos de solidão. É nele que “guardamos” as experiências culturais ancestrais da sociedade em que vivemos.

Entretanto, apesar de democraticamente compartilhado por ricos e pobres, por pessoas de todas as classes sociais, cores, raças, identidades sexuais, o espaço potencial dos seres humanos precisa ser cuidado e alimentado. E qual é o seu alimento? Winnicott nos responde: quando pequenos, é o brincar; aos poucos passa a ser a arte e as “experiências culturais derivadas da brincadeira”.

A escritora Fernanda Lopes de Almeida, que morreu discretamente no último dia 27 de dezembro, deve ter partido com a consciência de deixar como legado alimento para muitas crianças construírem seu espaço potencial.

Este texto é uma pequena homenagem à longeva e produtiva escritora, que nos deixou aos 96 anos e que, como poucos, soube se colocar ao lado dos pequenos, defendendo sua subjetividade e seu espaço vital.

REFERÊNCIAS

LAJOLO, Marisa & ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: História & histórias. São Paulo, Unesp: 2022.

PERROTTI, Edmir. O texto sedutor na literatura infantil. São Paulo, Ícone: 1986.

WINNICOTT, Donald. O brincar e a realidade. São Paulo, Ubu: 2019.

Estante Quindim

Conheça os livros de Fernanda Lopes de Almeida já enviados pelo Clube Quindim aos seus assinantes:

As mentiras de Paulinho, de Fernanda Lopes de Almeida
A curiosidade premiada, de Fernanda Lopes de Almeida
Pinote, o fracote e Janjão, o fortão, de Fernanda Lopes de Almeida
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