Recentemente, tomou conta dos noticiários nacionais o caso de Patrícia Linares, uma mulher de 44 anos, estudante do curso de Biomedicina em Bauru, interior de São Paulo, que foi vítima de bullying e deboche. As autoras foram Bárbara Calixto, Beatriz Pontes e Giovana Cassalatti, colegas de curso mais jovens do que Patrícia, que disseram coisas como “ela deveria estar aposentada” e “com 40 anos não pode fazer faculdade”.
Patrícia já foi vendedora e teve uma loja de roupas, mas não tinha tido, ainda, a oportunidade de fazer faculdade. Uma história que se parece bastante com a de tantas outras mulheres, no Brasil e no mundo, que interrompem seus estudos para cuidar de filhos, netos, irmãos e outras pessoas, sejam da própria família ou não.
O que é etarismo?
Etarismo, que é o mesmo que idadismo e ageísmo, é o preconceito e a discriminação praticados contra uma pessoa ou um grupo de pessoas em função de sua idade. É muito mais frequente com idosos, mas pode afetar pessoas de todas as idades, como vimos no caso de Patrícia. O etarismo está presente em todos os ambientes: na família, no trabalho, em consultórios médicos, odontológicos, hospitais, delegacias e em toda parte.
As manifestações do etarismo podem ser físicas e psicológicas, por meio de agressões verbais. Ainda que muitas vezes haja, de fato, violência e ofensas às pessoas por conta de suas idades, outras tantas vezes essa é uma prática silenciosa.
Uma pessoa pode perder uma oportunidade de emprego em função, exclusivamente, da sua idade. Aqui, sabemos que alguém jovem pode ser descartado por falta de experiência, e isso não é raro de acontecer. Mas o oposto, ou seja, um profissional experiente ser demitido porque “não dá mais conta” ou por “não ter a mesma energia de antes” é ainda mais comum.
Fora do ambiente profissional, é comum que necessidades, desejos, vontades e opiniões de idosos sejam desconsiderados simplesmente pela ideia equivocada de que eles não sabem o que dizem e são incapazes de fazer escolhas e tomar decisões que afetam a si mesmos e suas próprias vidas.
Considerando que fazemos parte de uma sociedade cuja expectativa de vida está cada vez maior, é natural que pessoas com mais idade ocupem todos os espaços, sejam eles escolas, faculdades ou cargos em empresas. No entanto, não é isso o que vemos acontecer na prática.
Segundo uma pesquisa da OMS, até 2050 a população de pessoas acima de 60 anos irá dobrar, ultrapassando 2 bilhões de indivíduos. Já a quantidade de pessoas com 80 anos ou mais deve triplicar entre 2020 e 2050, alcançando 426 milhões de indivíduos. Ou seja: além de ser crime previsto na legislação brasileira, o etarismo não faz mesmo sentido algum.
Como o etarismo afeta as mulheres
Assim como outros tipos de preconceito e discriminação, o etarismo tem graves consequências sobre a parcela feminina da população. Ainda que ocorra também contra os homens, os papéis atribuídos a homens e mulheres na sociedade fazem que sejamos significativamente mais afetadas. Isso acontece porque, historicamente, somos nós as principais cuidadoras da infância, da velhice, e do tempo compreendido entre elas, nos deixando, em maior ou menor grau, marginalizadas, afastadas do poder econômico, político e das tomadas de decisão.
Para ficar mais claro, vamos, juntos, fazer uma reflexão: quantas mulheres na sua família você conhece que dedicaram suas vidas inteiras a cuidar de outras pessoas? Que abandonaram seus empregos para cuidar dos filhos, ou que foram demitidas depois da gravidez? Que são as únicas, ou principais responsáveis por manter uma casa e uma família funcionando?
As mulheres, primeiro, são as filhas de alguém. Depois, passam a ser esposas, mães, avós e tias. Por definição, parece que somente existimos quando em referência a outras pessoas, principalmente homens. E o que acontece quando não mais podemos executar as funções do cuidado (que são inúmeras, diversas e quase sempre invisíveis)? Perdemos nossa atribuição e nosso valor.
O livro Estamos todas bem, escrito e ilustrado pela autora espanhola Ana Penyas, publicado recentemente pela Editora Palavras e enviado aos assinantes do Clube Quindim, fala justamente sobre isso.
Em tom delicado e sensível, mas também doloroso, a novela gráfica fala da geração das avós de Ana durante a ditadura franquista, ocorrida entre 1936 e 1975, e enfim coloca mulheres que passaram suas vidas inteiras cuidando de outras pessoas como protagonistas das próprias histórias. As avós de Ana, assim como tantas outras mulheres, passam a ser consideradas um fardo por toda a sociedade assim que envelhecem e não podem mais desempenhar o papel de cuidadoras, o que é especialmente cruel e doloroso quando praticado justamente pelas pessoas a quem se dedicaram por anos e anos a fio.
A obra de Ana Penyas nos força a enxergar mulheres como nossas avós, mães e a nós mesmas em um caminho que parece natural e inevitável, mas não deveria ser: o da invisibilização e desvalorização de quem cuida. A chamada economia do cuidado engloba todas as atividades relacionadas à casa e aos filhos, como alimentação, limpeza, educação, saúde, serviços pessoais e domésticos, que majoritariamente são desempenhados por mulheres sem qualquer tipo de remuneração. O que frequentemente é considerado uma manifestação de afeto, para muitas, é apenas o caminho que a vida costura independentemente da sua vontade.
Aliás, não é só sem pagamento que esses serviços são prestados: é sem reconhecimento, também. Muitos são desconhecidos e ignorados pelas próprias pessoas a que se destinam. Uma refeição, por exemplo, é quase sempre reduzida ao alimento já posto no prato e ao custo dos ingredientes. Quase ninguém vê as horas que uma mãe, avó ou trabalhadora doméstica passa na cozinha para fazê-la, as horas dedicadas no mercado escolhendo os ingredientes, a definição do cardápio e por aí vai.
Nunca é apenas uma refeição. Nunca é apenas uma roupa limpa, passada e guardada. Nunca é apenas o lanche da escola. São inúmeras atividades relacionadas entre si, intrincadas, que em praticamente todos os lares em que há uma mulher, é ela quem assume a responsabilidade de ter conhecimento do que acontece, planejando, resolvendo, cuidando, curando. Mas como são atividades invisíveis, frequentemente o que se ouve é: fulana não faz nada, é dona de casa, só cuida dos filhos. Como se fosse pouco.
A carga mental sustentada quase que exclusivamente por mulheres é mais um dos fatores que tornam a virada de chave da utilidade para o fardo ainda mais rápida na velhice, pelo seguinte motivo: quando uma mulher não serve mais para fazer nem mesmo esse “monte de nada invisível”, que sustenta famílias e sociedades desde sempre, qual é o seu valor?
Veja também: Economia do cuidado: o trabalho invisível que move o mundo.
A relação entre a produtividade e idade reprodutiva
Assim como os demais padrões de beleza, como cor de pele, tipo de cabelo e peso corporal, mulheres também são massacradas por suas idades. Como se envelhecer, por si só, fosse um crime. Somos bombardeadas por propagandas em todos os meios possíveis sobre o que fazer para que nossa pele se mantenha firme, nossos cabelos não caiam nem fiquem ralos, e nosso corpo se pareça o máximo possível e pelo maior tempo possível, com aquele que tínhamos na infância e na adolescência.
Os mesmos estereótipos que determinam que mulheres “valem a pena”, quais têm valor, as excluem ao menor sinal de envelhecimento. E lá vamos nós em busca de tratamentos milagrosos, procedimentos invasivos, medicamentos mirabolantes que possam nos ajudar a adiar, ou ao menos disfarçar a chegada da velhice.
A associação entre o valor produtivo de uma mulher (para o que essa mulher “serve”) e sua idade reprodutiva é direto. Assim, enquanto as mulheres são jovens, têm capacidade de gerar um ou mais filhos, e estão dando conta de tudo (leia-se: sendo sobrecarregadas com jornadas duplas e triplas, com menor ou nenhuma remuneração pelos serviços prestados), elas são vistas – ainda que, nem sempre, sejam ouvidas.
A partir do momento em que começam a envelhecer, perdem o interesse da sociedade como um todo e se tornam invisíveis, assim como as funções que desempenharam por anos e anos. E, aqui, não estamos falando apenas de mulheres com 60 anos ou mais, mas sim de outras tantas, acima de 30, 35 ou 40 anos, que passam a ser criticadas e ridicularizadas por fazerem coisas que a sociedade julga como inadequadas.
Mulheres parecem não ter o direito de se divertir, especialmente depois que não são mais consideradas jovens. É como se devêssemos viver e existir apenas para o trabalho, o marido e os filhos. Qualquer coisa que fuja disso é automaticamente criticado, diminuído, vulgarizado.
Há alguns meses, uma matéria da Folha de São Paulo se referiu à audiência do show do quinteto Backstreet Boys em São Paulo como “trintonas e quarentonas”, o que, todos sabemos, são termos usados de maneira pejorativa. Enquanto toda a reportagem foi tecida em torno da idade (tanto do público quanto dos artistas), não é difícil encontrar textos bem mais elogiosos quando o assunto são homens.
Homens podem ser efusivos torcedores de clubes de futebol, gritar e xingar enquanto jogam videogame. São apaixonados, ora bolas, nada mais. Basta procurar por algumas matérias falando de bandas clássicas de rock fazendo shows por aqui. O foco, nesse caso, costuma ser a virilidade dos “dinossauros do rock” e a legião de fãs fiéis que cresceu (mas jamais envelheceu) ouvindo suas músicas.
Não há nenhuma crítica, não é nada vexatório. São apenas homens adultos entusiasmados com seus hobbies. Aliás, ter um hobby é muito saudável e deve ser encorajado, desde que você não seja uma mulher adulta (casada ou não, com filhos ou não, que trabalha fora ou não).
A diferença é inegável.
Enxergar, valorizar e cuidar daquelas que cuidam
Quando uma mulher deixa de ser objeto de desejo, instrumento de reprodução e ferramenta de cuidado de filhos, netos e maridos, a que ela é reduzida? Como a sociedade enxerga esse ser humano que, tantas vezes, dedica sua vida inteira ao cuidado com os outros e que, com a chegada da velhice, não tem mais condições de exercer esse papel?
É urgente que todos e cada um de nós façamos uma reflexão sobre o espaço das mulheres cuidadoras em nossas vidas. A atenção, o respeito e o afeto que destinamos a elas, e como vamos retribuir, minimamente, tudo o que sempre fizeram por nós. Porque, vejam, é impossível devolver tudo na mesma medida.
Portanto, vamos nos perguntar sobre quantas e quais mulheres nos ajudaram a chegar onde estamos hoje. Quem são as mulheres em nossas vidas que nos estenderam as mãos quando precisamos, ainda que a custo do próprio tempo, da própria saúde? Como, em sua velhice, podemos preservar sua dignidade, garantindo que tenham abrigo, alimento e amor?
Mulheres idosas não são um fardo, um estorvo, transtorno. Cuidar delas é uma oportunidade de honrarmos alguém que faz parte da nossa própria história.