Às vezes o sol está brilhando da janela para fora, mas, dentro da gente, a sensação é de céu nublado. Nem sempre precisa ter acontecido alguma coisa: a vida pode até estar correndo nos trilhos, sem grandes problemas, mas a verdade é que isso não é suficiente para evitar sentimentos de tristeza e mau humor. A alegria não é um estado que nos acompanha constantemente, o que é profundamente opressor, já que, hoje, parecemos estar imersos em uma ditadura da felicidade.
Esse tema tão atual e tão urgente perpassa um dos livros que a seleção do Clube Quindim separou para seus assinantes neste mês de setembro. Trata-se do título Três desejos para o sr. Pug, de Sebastian Meschenmoser. Nele, o sr. Pug acorda tarde e mal-humorado, sentimento que piora quando ele percebe que não há cereal, café ou leite em sua casa, que está chovendo e o jornal está arruinado. A sensação é de que era melhor nem ter saído da cama até que uma fada empolgada, disposta a fazer de tudo para ver sr. Pug feliz, aparece.
Mas será que precisamos sempre estar de bom humor? Será que os sentimentos ditos ruins também não fazem parte da vida? E mais: será que outra pessoa pode se responsabilizar por nosso bem-estar? Essas são algumas perguntas que essa história nos convida a fazer – e que têm tudo a ver com o contexto em que estamos inseridos.
Sociedade de consumo: alegria a um passo de distância
Muitos dos comportamentos que temos são fruto da cultura de consumo em que estamos inseridos. Para Isleide Fontenelle, autora do livro “Cultura de Consumo”, essa tendência teve sua primeira fase no final do século XIX e começo do século XX, quando foram criados os mercados nacionais, a produção em grande escala, a invenção do marketing e do consumidor moderno. A partir daí, temos o surgimento de uma lógica de consumo: comprar um item não é apenas adquirir um produto ou serviço, é definir uma identidade, satisfazer um desejo, ser quem se quer ser e ainda sentir o que se quer sentir.
Hoje, com a tecnologia, a cultura de consumo está muito fortalecida: nos tornamos mais hedonistas, consumistas e imediatistas. A um toque do dedo no celular podemos comprar o que quisermos em qualquer lugar do mundo. Além disso, o consumo se torna ainda mais próximo da ideia da felicidade, como se fazer determinada viagem, ter o carro da moda, as roupas que a influenciadora usa ou o corpo que a celebridade tem pudessem ser um passe para a alegria verdadeira. Com tantas opções supostamente acessíveis, é quase proibido estar triste, o que fortalece essa ideia de ditadura da felicidade.
As redes sociais parecem ter turbinado essa opressão. Para Octavio Bonet, doutor em Antropologia da Saúde, o Instagram, entre outras plataformas de mídias sociais, contribui para a criação da ditadura da felicidade, em que “todos devem estar vivendo momentos maravilhosos o tempo todo”. A psicóloga Erika Maracaba fala em “positividade tóxica”, uma “tirania da positividade”, que nos induz a ignorar ou bloquear sentimentos de tristeza para estarmos sempre felizes. Em um texto, ela comenta: “Felicidade compulsória é forte combustível para a infelicidade”. Ainda lembra que todos os sentimentos têm sua importância, e quanto mais são ignorados, mais perdemos nossa habilidade de lidar com eles.
Tristeza X depressão
Se por um lado, parece ser padrão esperar que as pessoas estejam sempre esbanjando felicidade, por outro, um estado de tristeza comumente passa a ser associado com depressão. Para o sanitarista Paulo Amarante, professor e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Laps/Ensp/Fiocruz) e presidente honoris causa da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), a depressão se tornou um conceito maleável, aplicado a diversas situações de vida, como reações a lutos, separações e desemprego. Com esse diagnóstico sendo distribuído com maior abrangência, cresce também a indicação de antidepressivos, medicamentos que geram dependência reconhecida pela Organização Mundial da Saúde e devem ser prescritos com muita cautela, mediante avaliação de um profissional de confiança.
Paulo diz: “A vida não é uma norma, há diferentes padrões, cada vida é muito pessoal. Podemos inventar a doença, ampliar o conceito de doença e patologizar todo o sofrimento, ou podemos inventar e ampliar o conceito de saúde. O normal não é o estado de bem-estar eterno, permanente, ideal. O normal é a capacidade de reação às adversidades – pois elas existem”.
Para o especialista, podemos dizer que há depressão quando uma situação foge à explicação racional, quando há um estado de tristeza profunda inexplicável, com perda de ânimo, ideias de desvalorização e autodestruição, sem que houvesse um fato disparador, como uma perda. Um estado muito diferente, portanto, do sentimento de tristeza e mau humor que acomete a todos nós.
Outro ponto importante é compreender que processos de perda e morte, por exemplo, são encarados de forma diversas por culturas diversas. Paulo menciona que o “Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais”, da Associação Americana de Psiquiatria, considera que o luto a partir de seis meses de duração deve ser considerado patológico. Entretanto, é preciso compreender que cada pessoa viverá esse processo de uma maneira: “Esse é um critério absurdo; como se o luto fosse comum em todas as sociedades e culturas. Os bororo fazem um ritual muito diferente do das viúvas espanholas, de origem latina. Minha mãe ficou um ano de preto, quando meu pai faleceu. Não era um processo individual, era cultural também”.
Combatendo a ditadura da felicidade
Com todo esse cenário, é normal que os pais levem essas preocupações para as suas relações com os filhos. Diante das crianças, espera-se ainda mais ver muitos sorrisos e aquela alegria efusiva associada à infância. No entanto, para além das normas e das expectativas sociais que caem sobre todos nós, tentar enxergar a personalidade e compreender o processo de cada indivíduo parece ser o caminho mais equilibrado e mais acolhedor para todos.
É importante estar atento a mudanças de comportamento dos pequenos e à falta de ânimo que Paulo Amarante relata, assim como dialogar com as crianças e introduzi-las a um processo de alfabetização emocional, reconhecimento dos próprios sentimentos. No caso da tristeza, vale pensar no simpático filme Divertidamente, da Pixar. A partir do amadurecimento de uma menininha, ele apresenta as emoções que habitam as pessoas: a alegria, a raiva, o nojo, o medo e a tristeza. Com o passar do filme, fica claro que, à medida que a personagem cresce, os sentimentos ficam mais complexos. Assim, ficar triste não é completamente ruim, mas é um processo importante para amadurecer, se conhecer melhor e até acessar momentos alegres depois. A vida, afinal, é feita de complexidades, e ensinar isso às crianças desde o início da vida pode ser uma boa maneira de fortalecê-las para os desafios do futuro.
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