Criar um filho ou uma filha é também introduzi-lo a uma cultura, e esse talvez seja um dos aspectos mais importantes da educação. Nesse processo, a criança acessa a história de onde veio, um conjunto de práticas e comportamentos que vão condicionar as grandes decisões de sua vida. Como vai se relacionar com outras pessoas, como e se vai estudar e trabalhar, e de que maneira vai imprimir sua marca no mundo. Mas de que cultura falamos quando falamos de cultura com as crianças? Pensar esse assunto é pensar também sobre descolonização cultural, um tema urgente nos tempos em que vivemos.

Para a artista interdisciplinar, escritora e teórica Grada Kilomba, autora de Memórias da Plantação, descolonização é se desfazer do colonialismo: “Politicamente, o termo descreve a conquista da autonomia por parte daquelas/es que foram colonizadas/os e, portanto, envolve a realização da independência e da autonomia”. Parece complexo e teórico, mas pode se conectar a questões bem práticas da nossa vida quando nos fazemos perguntas como: O que andamos lendo e assistindo? De onde isso vem? Quais são os rituais familiares que praticamos? Ao que damos valor e quem nos disse que isso era importante?

Provavelmente essas respostas o conduzirão à cultura das regiões que, ao longo da História, mantiveram relações de colonização e dominação com o Brasil. É o caso de países da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. É de lá que vêm muitas das nossas referências, que foram inscritas na nossa cultura ao longo dos séculos. Por outro lado, foram apagadas e invisibilizadas as práticas e os valores dos povos originários, que habitavam o país antes da chegada dos colonizadores, e dos povos africanos, fundamentais para a constituição do Brasil, mas que também ficaram com um posto de subalternidade ao longo do tempo.

É como se a cultura e a história que chegassem até nós e se apresentassem como oficiais – na educação, nos livros, nas peças, nos filmes e na mídia – tivessem sido construídas majoritariamente por uma só parcela de pessoas, invisibilizando e deixando de fora outras tantas parcelas, outras tantas perspectivas. É preciso que questionemos esse ponto de vista único e que se apresenta como universal: somos muitos e temos muito para contar, construir e acrescentar.

Multiplicar narrativas

De forma prática, o que podemos fazer para descolonizar a cultura que consumimos e passamos para nossos filhos é, em primeiro lugar, entender que não há um ponto de vista, uma prática ou uma experiência universal. Quando fazemos esse movimento, deixamos de ter uma referência única. A música ideal, por exemplo, deixa de ser, assim, a que os estadunidenses produzem. A melhor forma de criar filhos ou de se alimentar deixa de ser a dos franceses. Aliás, passa-se a repensar a ideia de que exista algo perfeito, ideal, melhor ou pior: o que há é uma multiplicidade de formas de fazer e de ser, algumas delas mais escondidas do que outras. Cabe a nós jogar luz àquelas que não estão tão ao nosso alcance.

Acessar uma cultura mais diversa, menos condicionada pelos processos de poder que aconteceram ao longo da história, implica em ampliar nossas referências. Dentro da cultura indígena e da cultura de alguns povos africanos, por exemplo, há um senso de comunidade e de criação coletiva das crianças, além de uma integração entre crianças e idosos, que pode nos inspirar e ajudar muito. Quando buscamos outras referências, passamos até a questionar aquelas que adotamos como verdades absolutas na cultura que prevalece entre nós. Isso vale, por exemplo, para a forma como vivenciamos o casamento e as relações, nem sempre muito saudável, muitas vezes cheia de idealizações e expectativas, mas que é muito popular e tida como verdade por muitos.

Descolonização cultural e racismo

A autora Grada Kilomba associa esse processo de descolonização cultural ao racismo. Essa ideia de universalidade se coloca também na relação entre as raças: é como se as pessoas brancas fossem o universal, o “neutro”, e a pessoa negra fosse “a diferente”. Em uma entrevista, ela disse:

“As pessoas brancas não se veem como brancas, se veem como pessoas. E é exatamente essa equação, ‘sou branca e por isso sou uma pessoa’ e esse ser pessoa é a norma, que mantém a estrutura colonial e o racismo. E essa centralidade do homem branco não é marcada.

[…] E o que quer dizer marcar? Quer dizer também falar sobre diferenças. Por exemplo, como pessoas negras, muitas vezes, somos referidos como diferentes. E eu coloco a questão: diferente de quem? Quem é diferente? Tu és diferente de mim ou eu sou diferente de ti? Pra dizer a verdade nós somos reciprocamente diferentes. Então a diferença vem de onde? Eu só me torno diferente se a pessoa branca se vê como ponto de referência, como a norma da qual eu difiro. Quando eu me coloco como a norma da qual os outros diferem de mim, aí os outros se tornam diferentes de mim. Então é preciso a desconstrução do que é diferença.”

É daí que muitas vezes brota o racismo cotidiano: nos olhares ou em gestos invasivos, como o de querer tocar no cabelo de uma pessoa negra, como se fosse algo “exótico”. Ou ainda em perguntas ofensivas que muitas vezes pessoas negras escutam. Grada menciona o caso de mulheres negras que nasceram na Alemanha e escutam de pessoas brancas: “De onde você veio? Você fala alemão tão bem!”, como se uma pessoa negra não pudesse ser alemã.

Com as ideias que a artista reúne, chama a atenção para a necessidade urgente de todos nós nos desconstruirmos e questionarmos nossas ideias que vêm de senso comum, contaminadas com racismo. De pessoas brancas se racializarem e pensarem sua branquitude. Assim, podemos ampliar as narrativas, permitir que cada um seja sujeito de sua própria história, e não que haja apenas uma voz ouvida e ressoada. Assim, é mais possível que deixemos um mundo verdadeiramente diverso às futuras gerações.


Imagem de capa: O Pássaro Encantado, Eliane Potiguara e Aline Abreu, editora Jujuba.


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