Ícone do site Revista | Clube Quindim

Curadores do Quindim contam histórias memoráveis sobre seus professores

professores ana maria machado

Professores têm o poder de transformar realidades e trajetórias. São figuras de autoridade e de afeto, de acolhimento e de segurança; profissionais cuja formação é contínua, à qual se integra cada experiência, cada aluno. O ofício do professor foi e é essencial para todos nós, para a manutenção da sociedade democrática e a democratização do conhecimento. Os professores devem ser celebrados como aqueles capazes de mudar o contexto de um país.

Neste Dia dos Professores, os curadores do Clube Quindim compartilham conosco memórias sobre os mestres que tanto marcaram suas histórias. Veja a seguir:

“Volta e meia, em alguma entrevista, me perguntam quais foram minhas influências marcantes. Acho que querem se referir a algum escritor que eu tenha admirado muito e tentado copiar ou algo assim, não sei. Mas tenho certeza de que as minhas maiores influências foram alguns professores. Já escrevi sobre isso uma vez para um livro que está esgotado. Fica difícil limitar e escolher apenas um mestre, porque cada um me deixou marcas profundas de um modo diferente dos outros.

Mas, para homenagear no Dia dos Professores, eu escolho alguém que me marcou em sala de aula, quando eu tinha 11 e 12 anos de idade. Minha professora de português no Colégio Mello e Souza: Laís Míriam Pereira Lira.

Era muito jovem e muito exigente. Tínhamos três aulas por semana com ela – e, em cada uma, aprendíamos um pouquinho mais de análise sintática. Depois, ela passava um dever de casa com algum período para analisar, obrigatoriamente incluindo o novo conceito que tinha ensinado. Na aula seguinte, começava mandando uma aluna ao quadro corrigir o dever, enquanto ia de carteira em carteira conferindo o trabalho de cada uma e rubricando. Quem não fizesse, perdia meio ponto da nota no fim do mês. Simples assim. Para não perder ponto, todo mundo fazia. Cada dia um período um pouquinho mais complicado. No final, estávamos destrinchando os trechos mais sutis dos mais complexos escritores da língua – e percebendo os delicados matizes do idioma, sua estrutura tão rica e maleável, o sentido da gramática, a lógica subjacente à concordância ou a regência… Pelo método mais singelo: por termos gradativamente adquirido um entendimento interno de como a linguagem funciona. E íamos, ao mesmo tempo, percebendo as belezas do estilo de cada escritor, admirando a maneira pela qual ele moldava aquele repertório comum a todos de modo a que expressasse sua sensibilidade…

Isso deixou uma presença duradoura em minha vida. Nunca tive qualquer inibição para escrever, sei que as palavras me obedecem. Pude ser professora de português, jornalista e escritora, graças às marcas deixadas por Dona Laís. Uns trinta anos depois, quando eu já era uma autora premiada e dona de livraria, uma vez dei uma entrevista à televisão e disse isso, falando de minha eterna gratidão a ela, quando me perguntaram por minhas influências.

Daí a poucos dias, ela entrou na livraria e a reconheci imediatamente. Vinha me agradecer pela referência. Foi uma alegria nos reencontrarmos. Saímos para almoçar. Depois organizei um grupo de ex-alunas saudosas, para visitá-la. Nessa ocasião, ela estava aposentada e fazia parte de um clube do livro, que se reunia para discutir literatura. Continuava brilhante e antenadíssima.

Passei a encontrá-la com regularidade até que ela morreu, há alguns anos. Conversávamos de tudo – da vida, de arte, de política, de literatura. Acho que nesse momento, fazíamos bem uma à outra. Tenho muita saudade dela.”

Ana Maria Machado

Ana Maria Machado é a décima menina, da esquerda para a direita, na fileira do meio. A professora Laís está ao centro.

“Foram muitos os professores que contribuíram para minha formação para além dos muros da escola. Eu escolhi ser professor e atuar na educação por todos os referenciais que encontrei. Tenho tanto orgulho do que faço e do que sou que falar de mim é rapidamente falar de todos os outros que encontrei e até hoje que encontro.

Mas quero dedicar a um professor que não estava na escola. Conheci Charles Raszl em um curso de percussão corporal e foi ele que me convidou e me fez passear pelo mundo e as linguagens da arte. Tive aula de canto, de percussão corporal, sarau de leituras sobre Fernando Pessoa e todos os saberes que esse amado trouxe em minha vida. Com ele tive a oportunidade de estrelar nos palcos, participar de eventos e conhecer pessoas que também me apoiaram na minha trajetória. Nunca contei a Charles que meu jeito poético de ver a vida tem um tanto da maneira como ele me ensinou a ver, enxergar, mirar e sentir. Ao Charles, aos meus e a todos os professores, obrigado.
Meu coração é de vocês!”

Beto Silva

“Era o finalzinho dos anos cinquenta (sim! século passado…), no colégio Canadá, em Santos. Um professor de Filosofia e uma jovem professora de Física e Matemática. Professor João José Itagiba Mariuzzo e professora Maria Helena Lambert. Chamávamos ambos pelo nome – Itagiba, Maria Helena – e os tratávamos de “você”.

Eu me impressionava muito com a segurança com que Maria Helena transitava pelos números, leis, equações e fórmulas que preenchiam a lousa e eram copiados em fichários e cadernos sobre os quais ela se debruçava, conferindo o que fazíamos. Sempre paciente, sempre me fazendo pensar que o universo era compreensível…

O Itagiba me levava para outros caminhos. Caminhos de dúvidas. E a novidade de que era tão importante formular perguntas, quanto responder a elas. Talvez até mais importante… De vez em quando ele nos afogava em afirmações. Me lembro que uma das que me impressionou mais foi “o ser é, o não ser não é”, de um grego (?) que, segundo ele (Itagiba), influenciou Shakespeare….

Acho que foi com eles que comecei a levar ciência e literatura mais a sério.”

Marisa Lajolo

“Quando ela entrava na sala de aula, um misto de respeito e admiração tomava conta da classe toda. Tinha um olhar penetrante, severo e terno, ao mesmo tempo. Percorria a sala e ‘tomava a lição’ de um a um, com paciência, corrigindo ou elogiando o bom desempenho. Abolira a palmatória e os castigos físicos tão comuns naquela época (anos 50) em nossa cidade, Areia Branca/RN. Dizia que para manter a disciplina bastava sua autoridade. Estudávamos em uma escola multisseriada, constituída de uma única sala de aula, com alunos do primeiro ao terceiro ano do antigo Primário, de modo que fui alfabetizada por ela.

 Às vezes, ela nos levava a um passeio escolar em uma salina. Ali, ela nos explicava como o sal era produzido, sua importância para a economia do nosso Estado. Depois, brincávamos, lanchávamos e voltávamos para casa, felizes da vida. Eu olhava para ela com admiração e orgulho. Ela era mais do que a nossa professora, era a minha tia Noeme Dantas! Quando cresci e me tornei professora, era seu exemplo que queria seguir. Queria que ela olhasse para mim com o mesmo orgulho que sentia por ela.”

Miriam Dantas de Araújo

“O Professor Miranda carregava sempre um punhado de livros com ele. Alguns amarelados, de capa dura, outros grossos. Uns magrinhos, recheados de versos. Sobre a mesa, ele ia abrindo um a um. Lia, comentava, lia de novo. E os meus olhos não desgrudavam da voz dele, do passar de páginas. Aquilo alimentava a minha imaginação e eu não perdia uma aula de português. Prestava atenção em tudo.

Achava as aulas interessantíssimas, porque o professor Miranda mergulhava nos cenários das histórias e nos levava também. Ele lia trechos, comentava, falava da estética de cada texto. Com pouco mais de 11 anos, eu já havia lido José de Alencar, Machado de Assis, Eça de Queiroz, Raul Pompeia…

Fui fazer faculdade de Letras e quando reli algumas obras do José de Alencar, achei tudo bem chato. Entendi que o bom mesmo era ouvir a voz daquele professor apaixonado por literatura. E ele sabia tão bem prender os nossos olhos e ouvidos grudados nas páginas dos livros.”

Ninfa Parreiras

“Eu estava no fim do ensino fundamental quando comecei a ter aulas com aquela professora de voz firme, cabelo curto, exigente, que sempre carregava uma pilha de livros e uma garrafinha de água consigo. Ela era professora de português e redação. Tinha um jeito de falar sobre as obras literárias que me encantava, revelando perspectivas que eu jamais teria observado sozinha. Uma aula em especial me marcou para sempre, em que ela falou sobre Vidas Secas. A edição que tínhamos era ilustrada por Aldemir Martins. A professora de português chamou atenção para o traço seco, simples e duro das imagens, sobre como eles conversavam com a ambientação do romance de Graciliano Ramos. Eu era a ‘desenhista’ da sala, mas nunca tinha relacionado uma arte à outra. Fiquei tão encantada com a importância da plasticidade visual, da escolha do traço e estilo na narrativa verbal que passei a observar isso em todas as obras que chegavam a mim. Pouco tempo depois, quando escolhi cursar Produção Editorial, no desejo de trabalhar com literatura infantil, sabia que a decisão pelo curso tinha tido grande influência dela, que abriu meu olhar para as relações e diálogos entre as diferentes linguagens que eu tanto amava, a da palavra e da imagem. Anos depois, já atuando como editora, encontrei-a no Orkut e deixei um depoimento contando como suas aulas haviam me impactado e influenciado minha vida – até meu mestrado foi sobre o livro (ou álbum) ilustrado. Ela respondeu dizendo que uma lágrima havia escapado na leitura do depoimento. Explicou que era um trabalho de longo prazo, que a vida de professora era dura e ela pouco via de retorno sobre tanto trabalho. Nessa época, ela devia ter em torno de 60 anos. O Orkut morreu, e nunca mais consegui contato com ela. Mas fico feliz que ela saiba que sim, seu trabalho reverbera em mim e em tantos alunos que foram contagiados pela sua paixão pela literatura.”

Renata Nakano

“No início da década de 1970, na Faculdade de Artes Plásticas da FAAP tive, durante dois anos, aulas de história da arte com o professor Herbert Duschenes (1914-2003). Foram aulas inesquecíveis. Além de conhecer muito o assunto, Duschenes amava a matéria que dava. Seu curso funcionava como uma narrativa que colocava numa certa ordem movimentos ou momentos artísticos – e alguns de seus artistas relevantes – associando, ao mesmo tempo, essas manifestações à mentalidade histórica e às questões filosóficas e epistemológicas de cada período abordado. Tudo isso sempre acompanhado de projeção de slides (obviamente não existia datashow) ou filmes super 8 produzidos por ele mesmo. E mais: tudo o que ele mostrava nas aulas vinha acompanhado por uma trilha sonora feita da música produzida em cada época. Em resumo, olhávamos uma obra de Velazquez ou Paul Klee tendo como pano de fundo sonoro a música do tempo de cada um desses artistas.

De quebra, como viajava muito, Duschenes aproveitava para, de vez em quando, mostrar filmes feitos por ele sobre exposições de arte contemporânea que tinha acabado de visitar: bienal de Veneza, Documenta de Kassel, o MoMA de Nova York etc. Suas aulas eram, enfim, um arraso e um verdadeiro privilégio, mas quero contar outra coisa. Duschenes tinha muito mais material para mostrar do que as duas horas semanais de aula permitiam. Sendo assim, passou a convidar aqueles alunos que pareciam mais interessados na matéria a ir à sua casa aos domingos no fim da tarde. Eram talvez uns 12 alunos se tanto e tive a sorte grande de estar entre eles. Ficávamos por lá até umas 10 horas da noite.

Nessas ocasiões, além de passar filmes e mostrar músicas, Duschenes trocava ideias com a gente sobre arte, sobre a sociedade, sobre o momento que vivíamos no Brasil e sobre as questões de nosso tempo que de alguma forma se refletiam nas obras de arte. De vez em quando, convidava artistas amigos para participar do bate-papo e dar seu depoimento. A artista plástica Mira Schendel (1919-1988) era uma delas. Pois bem, num desses domingos, o professor nos contou que tinha sido chamado pelo diretor da faculdade e este lhe pediu para parar com aqueles encontros. Seu argumento era o de que havia muito zum zum zum sobre nossas reuniões, que alguém poderia considerá-las subversivas e isso seria problemático inclusive para a escola. Estávamos lá por 1972/73 em plena ditadura militar.

Duschenes foi muito claro e direto com a gente. Disse que nossos encontros eram culturais, que não estávamos fazendo mal a ninguém e que, por ele, podíamos continuar com as reuniões. Explicou que achou melhor colocar a questão para que nós decidíssemos. Éramos moleques de cerca de 20 anos e achamos ótimo continuar. Hoje vejo que, na verdade, estávamos correndo risco. Sem dúvida Duschenes com coragem e generosidade estava colocando ele mesmo, a sua carreira e a segurança de sua família em risco. Eram tempos violentos onde imperavam o autoritarismo, a ausência de direitos humanos e a ignorância sobre qualquer coisa que possa ser chamada liberdade de pensamento ou de democracia. Duschenes tinha, por exemplo, uma bela e diversificada biblioteca e, sem dúvida, entre seus livros havia os que poderiam ser considerados de esquerda, obras de Marx e Engels, autores da Escola de Frankfurt e coisas assim. Algum policial poderia entrar lá, olhar os livros, olhar uma reunião de jovens e mandar prender todo mundo, principalmente o próprio Duschenes, sob acusação de ser um professor comunista e subversivo. Tristes tempos. Da minha parte, posso dizer que eu era um e passei a ser outro após as aulas desse grande e inesquecível professor, exemplo de homem e de caráter.”

Ricardo Azevedo

APROVEITE ESTE MOMENTO PARA INCENTIVAR A LEITURA!


Sair da versão mobile