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Meu filho tem um amigo imaginário, devo me preocupar?

Imagem do livro "Adamastor, o Pangaré", de Mariana Massarani.

Qual família com criança nunca viu o tapete da sala de casa se transformar em cenário para um castelo de cavaleiros e princesas, para a areia fofa da praia ou para o espaço sideral? Quem nunca tomou um chá de mentirinha servido na lanchonete inventada e pagou um preço exorbitante com moedas invisíveis?

Certamente, o que não falta durante a infância é a intensa capacidade de fabular, e ser capaz de “entrar na onda” e participar da fantasia dos pequenos é parte importante da relação entre pais e filhos. Isso porque esse hábito ajuda a estreitar os laços e até contribui na percepção de como a criança pensa e se sente, afinal, nessa fase da vida, elaborar e comunicar as emoções ainda é um processo em construção.

Mas e quando as asas da imaginação levam o pequeno a criar um amigo imaginário, será que há motivos para preocupação ou a novidade pode ser entendida apenas como mais uma manifestação natural do faz de conta? Como pais e cuidadores podem entender essa situação?

Veja também: A importância da amizade de infância para o desenvolvimento infantil

Uma expressão da criatividade infantil

“O amigo imaginário é uma das formas que a criança tem para expressar sua criatividade”, diz Cecília Rocha, psicóloga e arteterapeuta especialista no atendimento de crianças, adolescentes e famílias. “Gosto sempre de enfatizar que a saúde emocional de uma criança é também observada por meio da sua capacidade de criar e fantasiar, e ter um amigo imaginário pode ser a expressão dessa capacidade, da mesma forma que acreditar em figuras como Papai Noel e Fada do Dente”, afirma.

Para se ter uma ideia do quanto o companheiro ficcional está ligado à criatividade, uma pesquisa desenvolvida no Reino Unido em 2019 concluiu que a presença intensa da tecnologia na primeira infância está tirando o período de tédio que permitia aos pequenos criar na imaginação. O resultado do elevado tempo de tela é uma capacidade de fabular menos estimulada e, consequentemente, um número muito menor de crianças com companhias imaginárias.

Como se define um amigo imaginário?

Seu filho está brincando de escolinha e “conversa” com os alunos como se fosse o professor ou “treina” um time de futebol que só ele vê? As situações são comuns e naturais, mas não se encaixam na categoria de amigos imaginários – para tanto, é preciso seguir algumas características fundamentais.

Cecília explica que, por definição, o companheiro da imaginação é um personagem que tem nome, é mencionado pela criança e, em geral, se mantém por alguns meses. “É importante ressaltar que é uma forma de faz de conta e que ela reconhece sua irrealidade”, acrescenta.

A fase mais comum para a criação de amigos imaginários, diz a psicóloga, é entre os 2 e 6 anos de idade, pois é justamente nesse período da infância que a capacidade de fantasiar se intensifica. Entre os mais novos, é comum haver uma personificação desse personagem nos brinquedos, como bonecas ou bichinhos de pelúcia. Já os maiores costumam ter amigos invisíveis, que podem ser crianças, animais ou até outros seres.

Não há motivos, portanto, para atribuir essa construção simbólica a uma possível perturbação psíquica ou, logo num primeiro momento, tentar encontrar significados profundos. Muitas vezes, esse companheiro é criado apenas pela diversão. Ainda assim, é claro, sempre vale observar a criança com sensibilidade e se atentar para possíveis mudanças de comportamento.

Um recurso para lidar com as dificuldades

Embora não seja indicativo de que algo vai mal no dia a dia do pequeno, ter um amigo imaginário pode ser um recurso que ele desenvolve para lidar com um fator estressor. “Estudos mostram que essa figura pode ser um apoio para a criança superar medos, sentimentos de solidão e dificuldades específicas”, relata Cecília. O temor de escuro, o receio de ficar sozinho, a angústia por uma novidade… situações que podem não ser tão facilmente elaboradas na infância acabam ganhando uma ajuda com esse recurso criado pela própria criança.

Também por isso, a psicóloga reforça a importância de respeitar a fantasia, mas não só: “o amigo imaginário, mesmo não sendo real, ganha um espaço importante de afeto para a criança e não precisamos nos opor a ele”. Portanto, não é recomendado negar a existência desse companheiro, repreendendo a criança e repetindo falas como “ele não existe” ou “pare de inventar história”. Ao mesmo tempo, não é interessante atribuir grande importância à ficção e estimular a relação fantasiosa; o ideal é buscar um meio-termo e procurar tratar a questão com naturalidade.

Veja também: Inteligência emocional em crianças: como ajudar o seu filho a desenvolvê-la com afeto.

Ter um amigo imaginário pode deixar de ser saudável?

Apesar de ser algo natural do fabular infantil, a relação com o amigo imaginário pode, sim, dar alguns sinais de alerta para pais e cuidadores. Por exemplo, se a família nota que a criança passou a evitar os amiguinhos reais e ficar mais tempo isolada, sem interesse por brincadeiras, diálogos e relações verdadeiras, é o caso de buscar a orientação de um profissional, como um psicólogo infantil, além de observar com mais atenção o dia a dia do pequeno.

“É importante compreender se essa fantasia se faz presente pela própria diversão que a interação proporciona ou se a criança faz uso dela como suporte para lidar com alguma situação real. Sempre oriento os pais a avaliar também outros aspectos do desenvolvimento do filho: desempenho escolar, sono, emoções predominantes, relacionamentos sociais… Esses pontos podem sinalizar se algo não vai bem”, relata Cecília Rocha.

Mais uma situação de alerta que a psicóloga acrescenta é quando a criança passa a culpar o amigo imaginário por todos os seus problemas de comportamento, tentando se esquivar da responsabilização por suas próprias ações. “Foi ele que fez essa bagunça” ou “só agi dessa forma porque ele mandou” são exemplos de falas que podem se tornar recorrentes nesse sentido.

Outro sinal de atenção é se ela passa a demonstrar medo do companheiro imaginado, o que indica que, além de conversar sobre esse amigo, é hora de procurar ajuda. “É a dinâmica dessa relação que nos fornece pistas sobre o que a criança observa e vivencia em seu ambiente”, acrescenta a profissional.

Além disso, em geral, os amigos imaginários são semelhantes aos pequenos, ou seja, também são crianças (ou outros seres). Então, se o personagem criado tiver a figura de um adulto, vale investigar ainda melhor, “pois pode representar necessidades específicas que a criança não consegue expressar e, em casos mais graves, até algum tipo de abuso”, ressalta Cecília.

Reforçando os sinais de alerta

O amigo imaginário desaparece sozinho?

Se a família está preocupada com a permanência do personagem na vida do pequeno, Cecília explica que essas figuras criadas pela imaginação infantil tendem a desaparecer naturalmente. “Isso está relacionado ao amadurecimento cognitivo e emocional da criança e costuma acontecer até os 8 anos, aproximadamente”, sendo que depois dos 6 a ocorrência dos amigos imaginários se torna menos frequente.

Para aqueles que procuram outras formas de acessar o assunto com os pequenos, evitando a abordagem direta, a ludicidade é sempre um excelente caminho – e Cecília dá destaque à leitura. “É um recurso de fácil acesso e poderoso, então buscar livros sobre esse tema específico pode ser muito benéfico”, aconselha a psicóloga e arteterapeuta.

Mas não é apenas a literatura que traz especificamente a temática do amigo imaginário que se mostra útil nesse caso, como reforça a profissional: “Livros sobre educação emocional também podem ser recursos interessantes, pois, como vimos, amigos imaginários podem atuar para as crianças como facilitadores da comunicação. Isso porque algumas apresentam dificuldades em falar dos seus sentimentos e necessidades”.

Por esse motivo, leituras e atividades que proporcionem ao pequeno a possibilidade de compreender melhor suas emoções e expressá-las de forma assertiva são muito propícias. Além disso, construir uma boa relação com os próprios sentimentos desde a infância tem impactos muito positivos também no futuro, repercutindo ao longo de toda a vida.

Veja também: 5 livros infantis que vão ajudar seu filho a lidar com as emoções.

Estante Quindim

Conheça 3 livros já enviados pelo Quindim para ler com as crianças que podem ajudá-las a conversar sobre suas emoções:

A vida secreta das emoções, de Tina Oziewicz e Aleksandra Zając
Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque e Ziraldo
Adamastor, o Pangaré, de Mariana Massarani
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